terça-feira, 3 de dezembro de 2013

Mayara Camera

08 de Novembro de 2013


Eu não tinha ideia de onde ficava a Aldeia Maracanã. Logicamente que estaria localizada no entorno do maior estádio do mundo, mas eu não sabia ao certo em que altura. Nesse contexto, acabei caminhando até quase completar a volta inteira de 1,8km, quando finalmente me deparei com uma estrutura decadente, quase sombria. Em meio a tantas obras de revitalização com tudo muito novo e limpo, a Aldeia parece deslocada.
Eu estava sozinha e o relógio batia 16:40h. Deveria me encontrar com outros colegas de classe para dar início a um trabalho etnográfico para a disciplina de antropologia. Cheguei antes de todos e fiquei parada a observar o local. Frente a algo novo e inusitado, milhares de pensamentos cruzaram a minha cabeça. As primeiras coisas com as quais me deparei foram muitos pombos e gatos, alguns vivos, outros mortos. O cheiro era horrível. Tudo muito estranho. Entre silêncio e ausência de movimento, comecei a avaliar a possibilidade de o local estar vazio. Fora os animais em estado lastimável que se encontravam na parte externa, realmente não havia qualquer outro sinal de vida. Bati algumas fotos e optei por me encaminhar para a lateral direita.
            Foi quando visualizei um garoto que, com seus 20 anos, surgiu em uma das janelas, passando o dedo freneticamente na tela touchscreen de seu smartphone. A aparência não enganava: típico jovem de classe média, com camisa xadrez e uma quantidade considerável de piercings espalhados pelo rosto. Gritei um “hey” e pedi para que viesse ao meu encontro, sugestão que foi prontamente atendida. Perguntei pelos residentes e sobre outras pessoas que, além dele, estariam ali dentro. Enquanto conversávamos, fomos andando em direção à lateral esquerda, onde se encontra a entrada física da construção. Ele adentrou primeiro e me informou que mais tarde haveria um evento ali. Fui apresentada a um homem com cerca de 40 anos que se disse frequentador assíduo... Professor de história graduara-se num passado não tão remoto pela Universidade Federal Fluminense. Foi ele quem me levou a dois dos índios que, pelo que entendi, eram importantes e que por isso, a quem eu deveria me reportar a fim de solicitar autorização e dar início ao trabalho documental.
            Os índios foram solícitos, mas passei por uma espécie de “saia justa” quando um deles questionou se meu objetivo com aquilo não seria angariar recursos que logicamente não lhes seriam repassados. “– Conheço jornalistas.”, disse. Retruquei que era estudante e que o objetivo era de fato a etnografia e que, como estudante, eu nem tinha malícia para tirar vantagem da situação. Apesar de ter ficado claro que não o convenci, a autorização me foi concedida.
Eu não sabia bem o que fazer ali e me sentia deslocada, observando.  Num dado momento me foi oferecido um líquido que preenchia uma garrafa pet imunda e velha, cujo cheiro denunciava o alto teor alcoólico. Lancei mão da velha desculpa de que estava dirigindo e que, por isso, infelizmente teria de recusar a oferta.
A primeira coisa que me chamou a atenção quando adentrei a aldeia, foram as pessoas. Fora o menino com quem tive o primeiro contato, havia ali outros jovens que pude identificar como pertencentes à mesma tribo. Todos meio “punks”. Quero dizer que todos eram jovens estilosos, com cabelos coloridos, moicanos ou penteados trash e adornavam-se com coturnos de couro, spikes e afins. Me encaravam, mas não se dirigiram a mim. Apesar de não se abrir a nenhum tipo de aproximação, pareceram se divertir com os comentários dos índios importantes acerca do meu nome - MAYARA – de origem indígena. Também não pareceram incomodados com minha presença e tampouco curiosos. Compartilhavam o líquido e fumavam muito: cigarros e baseados de maconha. O famoso cachimbo da paz também estava rolando.
Comecei a observar as instalações. O hall em que nos encontrávamos era bastante amplo e muito bem iluminado. O pé-direito era imensurável. Eu chutaria que este chega a uns sete, talvez oito metros. O teto é todo em madeira, bem rústico. Está em péssima condição de conservação, assim como todo o local. O piso era um composto de cimento queimado com areia e aquelas pedras minúsculas que costumam nos incomodar quando entram em nossos sapatos. No final da parede do lado direito havia uma porta. Não tive a oportunidade de adentrá-la e não entendi muito bem o que poderia ter ali. Já na parede do lado oposto, havia duas outras passagens para o que entendi serem os quartos. Em uma delas notei de relance um garoto sentado com um notebook no colo. Jogava Counter-Strike. Na outra, não pude obervar absolutamente nada além de um espaço vazio com diversas outras passagens. Os cômodos não são preenchidos por móveis. Há um sofá, uma mesa e alguns bancos, daqueles de igreja, no hall. Tudo muito velho. Não há energia elétrica e a escuridão da noite é compensada por um refletor cujo longo fio alimenta-o de energia de algum lugar que não pude identificar.
Os colegas chegaram e, ao ouvir meus relatos sobre o que havia acontecido até então, alguns pensaram em desistir. Ficamos cerca de 20 minutos ponderando os prós e contras em prosseguir com o trabalho na aldeia. Ao chegamos a um consenso, adentramos o local. Estava me preparando para apresentá-los àqueles com os quais eu havia conversado quando, de repente, cerca de trinta pessoas adentraram o hall e começaram a se posicionar nos bancos. Um rapaz os identificou como estudantes de história que participavam de em um congresso da área que estava acontecendo na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Esse mesmo rapaz, por sinal, também era estudante da UERJ e carrega o orgulho de ser primeiro estudante indígena a entrar pela reserva de vagas para sua etnia.  
Após a apresentação houve uma palestra que durou não menos de uma hora. O índio estudante falou praticamente sozinho. Porém aqueles outros dois que julguei ”importantes”, permaneceram o tempo todo ao seu lado. Foram abordados diversos temas, todos obviamente correlacionados à cultura indígena. A Universidade Indígena foi colocada como o principal projeto e objeto de luta dos índios que alimentam o movimento da Aldeia Maracanã. Os estudantes não pareceram entediados. Gravamos o que pudemos em áudio e vídeo e aproveitei para fazer registros fotográficos.
Uma espécie de ritual finalizou a apresentação, com o que chamaram de roda, na qual três índios portando chocalhos puxavam cantos de suas tribos. Os estudantes e os frequentadores participaram.
Tentamos falar com o palestrante ao final da apresentação mas este, ainda que solícito, se limitou a deixar seu telefone para um possível contato posterior. Estava atrasado para a aula. Fomos em direção a um rapaz com dreads e moletom preto sentado em frente a uma mesa tosca em cima da qual haviam espalhadas dezenas de folhas de A4 com fotocópias de arte em grafite. Fomos informados de que no dia seguinte, sábado, haveria um mutirão para pintar as paredes internas da aldeia, misturando arte e frases de efeito relacionadas à luta local e fomos indagados se não poderíamos colaborar com algum dinheiro para a aquisição de latas de tinta. Concordamos.
Perguntamos ao rapaz se ele ali residia e sua resposta fora afirmativa. Prontos para prosseguir, ele nos questionou sobre estarmos gravando o áudio da conversa num aparelho de MP4 sem ter antes requisitado sua autorização. Me defendi  dizendo que assim que chegara já tinha comunicado que nosso objetivo era documentar em imagens e áudio e que tinha obtido autorização, ao que ele retrucou que cada um ali era um indivíduo e que ainda assim deveríamos tê-lo comunicado. Muito sem graça, concordei e me desculpei. “- Estamos tentando fazer o nosso melhor, mas também erramos. Em nenhum momento pensamos poder ofendê-lo, mas acredito que a situação servirá para que, ao longo de nossa carreira, erros como esse nunca mais se repitam.” Perecendo satisfeito com a resposta, o rapaz prosseguiu com a entrevista, autorizando a gravação. Identificou-se como membro do movimento anarcopunk do Rio de Janeiro e disse residir no local há cerca de quatro meses: “- Sou um nômade e, no momento, estou aqui defendendo não só a luta dos índios, como também aquela contra o capitalismo e a entrega da cidade a Eikes e Odebretchs”. Apesar de não ter conseguido precisar o número de habitantes, o rapaz disse supor que seja algo em torno de 30 pessoas; a convivência, segundo ele, é pacífica. Todos lutam pelos mesmos ideais, e os que discordavam em algum ponto foram aqueles que aceitaram o acordo oferecido pelo governo. Ele não esclareceu, no entanto, que acordo foi esse nem para onde essas pessoas teriam ido. Apenas ressaltou que o objetivo da dupla Cabral/Paes é fazer da Aldeia uma loja de Souvenirs e um café espaço wi-fi para que os turistas possam deixar alguns dólares a mais durante os jogos da copa. “– Mas e depois?”, questionou.
Finalizando a conversa com o anarcopunk, direcionamo-nos para um dos índios que haviam me recebido cerca de três horas antes. Um rapaz relativamente novo e com sobrepeso. Paulo, que é bacharel em direito, permitiu que o gravássemos tanto em imagem quanto e áudio. Aprendemos a lição!
Em meio à entrevista, três pessoas se juntaram a nós: um senhor de baixa estatura e feições indígenas bem típicas acompanhado por uma mulher, também na faixa etária dos 35 anos, além de um homem, apontado como um dos advogados da aldeia. A princípio todos ficaram parados a ouvir o primeiro falando até que num dado momento lhes foi oferecida a palavra, das quais fizeram uso por um bom tempo. A mulher foi quem nos ofereceu o contato de um número considerável de pessoas ligadas ao movimento e mostrou-se bastante entusiasmada com a nossa presença.
O sr. ressaltou que a imprensa já esteve algumas vezes no local mas que, apesar de tê-los deixado falar abertamente, nunca publicou o que eles diziam ou pleiteavam “- Eles sempre engavetam tudo que dizemos de importante para nossa luta.”, reclamou. Pediu que nos esforçássemos para que o que ele havia dito alcançasse ao maior número possível de pessoas. A mulher, que se disse frequentadora do local, afirmando morar numa comunidade de pescadores, pediu que mantivéssemos contato através das redes sociais. Foi bastante solícita ao nos fornecer os contatos de líderes e participantes do movimento de forma que puséssemos ampliar e enriquecer o trabalho.
Ao final nos foi oferecida pelo cacique, uma foto junto à fogueira que se encontra no meio do hall. O sr, que abandonara sua aldeia no Acre em prol da luta, ornamentou-se com cocar de penas de arara e outros adereços e pediu que posássemos junto a ele. “ – É uma tradição e lhes trará sorte.”

Rio de Janeiro, 20 de Novembro de 2013

Minha segunda visita a aldeia Maracanã ocorreu numa quarta-feira, feriado regional pela consciência negra. Num dia de clima absurdamente quente, todas as minhas expectativas acerca de possíveis atividades extras na aldeia foram frustradas. Cheguei lá por volta de 12:30h. Tinha acabado de almoçar uma salada leve, mas o mormaço em nada favorecia a disposição e o bom humor. Os integrantes do grupo já estavam presentes e entrevistavam Paulo Apurinã.
Eu já havia conhecido Paulo naquela primeira visita 13 dias atrás. Paulo é um dos índios “importantes” da aldeia. Filiado ao PSol, tem planos não muito distantes de se eleger senador pelo estado do Amazonas. Falou para nossa Nikon semi-profissional por mais de 60 minutos, praticamente sem interrupções. Entre realidade e utopia, figuraram em sua fala assuntos como construção de hidreléticas, demarcação de terras indígenas, má distribuição de renda no Brasil, corrupção, pobreza, ganância, dia-a-dia na aldeia, relação dos índios com o avanço tecnológico, constituição federal e o não cumprimento do item – “direitos iguais para todos”, projeto de tentar alavancar uma bancada considerável com representantes indígenas no congresso, etc.
Paulo Apurinã, pode-se dizer, é um camarada simpático e acessível. Bacharel em direito, mostra-se muito bem articulado. Argumentou que Belo Monte é um desperdício de dinheiro público, já que o rio Xingu não é perene, ou seja, as cheias são intercaladas por longos períodos de seca o que, segundo ele, praticamente inviabiliza o projeto. Este seria na realidade uma forma de entubar capital na mão de alguns cartas marcadas “- A conta de Belo Monte, ficará para os netos de vocês”, disse. Apesar de não ter revelado sua idade, tive a impressão que ele tem cerca de 35 anos.
Após Apurinã despedir-se para cumprir seu compromisso de ir à praia, ficamos por um tempo a discutir aspectos relacionados com os trabalhos da Escola de Comunicação. Encontrávamo-nos numa das únicas ocas que foram reerguidas após a passagem devastadora do Batalhão de Choque em março deste ano. Aproveitamos para documentar nossa conversa.
Estávamos distraídos quando surgiu, próximo a onde estávamos, uma mulher com cerca de 25 anos. Encaminhando-se para uma pia lotada de louça suja (leia-se imunda), situada na parte externa da aldeia, ao lado dos banheiros improvisados, a moça teve todos os seus movimentos observados por nós. Não hesitamos em fazer uma abordagem sutil e, simulando um papo casual, descobrimos que ela é residente de um abrigo situado na Cinelândia, mas também se intitula como frequentadora assídua da Aldeia. “- Gosto de vir aqui para ajudar”, declarou. Aberta à conversa nos permitiu realizar uma série de perguntas, as quais foram prontamente respondidas. Segundo Rosângela, que não fez objeção quanto a ser filmada, a Aldeia não tem líderes. Tudo é coletivo. Comem da mesma comida, sem nenhum tipo de diferenciação.
Adentramos a Aldeia e nos deparamos com Francislei, um mineiro de Teófilo Otoni, que Gabriel já tinha conhecido numa outra visita na qual não estive presente. Francislei foi de grande valia para o trabalho. Além ter esclarecido diversas dúvidas que levantamos, nos apresentou o local e todos os cômodos, incluindo a parte superior, a qual alcançamos após uma grande dose de coragem para subir através de uma escada sem degraus e com a estrutura decadente de ferro corroído.
 Admito que apesar de arriscada, penso que a aventura indiscutivelmente valeu a pena. Talvez essa tenha sido uma oportunidade única de descortinar aquele ambiente tão misterioso/sombrio que, talvez em poucos meses, não passe de escombros no chão. A percepção que tivemos é a de que a estrutura está totalmente comprometida, talvez sem chances de recuperação.
Após sair da Aldeia notei balaústres que indicavam um terraço, ao qual infelizmente não chegamos. Uma pena. Soubesse antes certamente teria tentado alcançá-lo.

Ao final do dia estávamos exaustos, não pelo tempo que ali passamos – mas vencidos pelo calor insuportável. Cheguei em casa passando mal e com sinais insolação, mas com 250 fotos impagáveis em minha Nikon.

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