08
de novembro de 2013
O
primeiro dia no campo foi revelador para todos que estiveram presentes. Ao
chegarmos, foi estranho ver a Aldeia de perto. É absolutamente normal passar de
carro ou ônibus e olhar de longe. Mas entrar lá nunca fez parte dos meus
planos. Apesar de ter aprovado a ideia, ao longo da visita senti que o lugar
não tinha nada de aconchegante, além de estar repleto de pessoas fora do padrão
médio capitalista, suas roupas, seus cabelos, as aparências de uma forma geral
não nos eram normais. O cheiro lá dentro era bem forte e desconfortável, uma
mistura de bebidas e fumos.
Quem veio nos receber foi a Mayara, que havia
chegado antes do resto do grupo. Ela começou a contar como observou tudo lá
dentro, desde a aparência do lugar até a forma como ofereciam bebida a ela.
Discutimos entre nós a relevância do trabalho dentro da Aldeia e decidimos
entrar. Logo de cara descontruí meus paradigmas. O detentor da fala, um homem
de aparência branca, estava caracterizado de índio e dando uma espécie de
palestra acerca da arte indígena. Ao redor, não havia apenas os índios que eu
imaginei (pessoas de pele morena, cabelos lisos e olhos levemente puxados), mas
também adolescentes punks e negros. O
que mais me chamou a atenção foi o grupo de jovens. O que um grupo de punks teria a ver com a cultura
indígena? Porque pessoas inseridas desde o nascimento na cultura capitalista
escolhem frequentar um não-lugar? Um espaço que não corresponde ao todo
que o envolve e o pressiona. Esse olhar pessoal não foi, no entanto, de
crítica, mas apenas de curiosidade. Por que a causa indígena ganhou tanta voz?
Qual é relação que aquelas pessoas têm de tão importante com aquele espaço, a
ponto de enfrentar a polícia e o governo? Levei todas essas dúvidas para casa,
além de mais uma, gerada da fala do próprio branco descrito no início. No seu
discurso, algo de muito forte marcou a visita do ponto de vista antropológico:
em meio à fala, ele bate no peito e grita: “ÍNDIO É RAÇA PURA!”. Uma ideologia
“ariana” tão enraizada que ele mal percebeu que aquele discurso não pertencia
ao seu grupo.
Com tantas questões em mente, é chegada a hora
de produzir respostas.
14 de novembro de 2013
Em
primeiro lugar, nessa segunda visita percebi o quanto é involuntário produzir
perguntas todo o tempo em um estudo etnográfico. Elas me saltam muito mais
facilmente do que as respostas. Cheguei primeiro desta vez. Ninguém me notou
muito, já que um debate estava a todo vapor lá dentro. Aliás, ninguém me notou
muito, até que eu tirei a câmera da mochila. Quem se aproximou de mim foi o
Francis, um rapaz negro, bem simples, e com um aspecto aparentemente simpático.
Identifiquei-me e comecei a puxar uma conversa. Mal sabia eu que aquela seria
uma história única. Francis me contou ser de Minas Gerais, mas que durante a
infância viveu em uma comunidade quilombola no Espírito Santo. Depois de um tempo
sentiu que não tinha ainda o “seu” lugar no mundo. Foi quando descobriu a
Aldeia Maracanã e decidiu se mudar para o Rio de Janeiro. Pensei na hora porque
aquele espaço era um “não-lugar” pra mim (em meio à paisagem urbana do Rio e
agora do lado do Maracanã-padrão-FIFA) e um lugar pra ele viver. Isso
será muito importante para as minhas próximas perspectivas e para o
desenvolvimento desta etnografia. Mais do que isso, a história de um menino
negro que passa a infância em uma comunidade quilombola e mais tarde em uma
aldeia indígena só poderia ser mesmo brasileira!
Ao
meu redor, muitos artesanatos à venda, um notebook e um carrinho de bebê meio
destruído. Havia muitos troncos também, todos trazidos da Universidade Federal
Rural do Rio de Janeiro. Eles serão usados para a construção de ocas. Segundo
os moradores, caso o governo queira reformar o prédio e fazer isso como
desculpa para despejá-los novamente, as ocas serão usadas para que eles não
deixem a Aldeia em hipótese alguma. Na visita de hoje senti muita verdade no
discurso de Francis, mas ao mesmo tempo senti que não era muito bem articulado,
até porque a todo momento, qualquer assunto o levava para a temática política.
Depois de um tempo começou a parecer um pouco engessado.
Tirei
algumas fotos da fachada e percebi o quanto a arte significa para aquele grupo.
Todas as pinturas, a maioria delas coloridas, continham uma mensagem que
sintetizasse o sentimento de quem mora ali. Por isso mesmo não é muito
surpreendente ler frases como: “Fora Cabral” e “Liberdade aos presos políticos”.
Outras tinham caráter menos negativo e político, mas não deixavam de propor
mudanças por um novo mundo: “Germinando vida neste mundo cinza” e “Só com
respeito à origem se constrói o novo”. Durante todo o tempo eu ouvia gritos de
“Aldeia resiste!”, especialmente quando, puxando o coro, alguém sentia a
necessidade de reforçar a última fala apresentada.
Lá
dentro, o debate estava acalorado e novamente a diversidade me chamou a
atenção. Um dos homens que mais falava era branco e se vestia com camisa e
calça social. Enquanto isso, uma mulher proclamava: “Eu estava aqui (no dia da
ocupação policial), levei choque! Não posso ser indígena?” O homem do início do
parágrafo respondeu: “Sim, pode”. E então ela fala algo que marca a necessidade
de aceitação dentro de qualquer grupo: “Não é o senhor, branco, que vai dizer
isso, são os outros indígenas.” Estava claro ali, que apesar de frequentar a
aldeia e defender a causa, ele não representava aquela coletividade. Antes de
ir embora, no entanto, uma roda com todos foi feita. Havia muitos chocalhos,
uma fogueira no meio e um representante indígena vestindo cocar e dançando de
uma maneira bem típica, de acordo com os referenciais do senso comum.
20 de novembro de 2013
Na
terceira visita à Aldeia resolvi observar (e fiz isso durante uma hora inteira)
qual era a reação das pessoas que praticavam algum tipo de atividade no entorno
do Maracanã ao se depararem com o lugar. Estava realmente quente. E como eu já
esperava, a curiosidade maior vinha sempre das crianças. Algumas só ficavam
olhando, outras faziam perguntas aos pais e estes por sua vez desconversaram
todas as vezes. O que até é compreensível considerando que uma criança de dois
anos talvez precisasse de mais do que dois anos para entender o que realmente
significa o espaço Aldeia Maracanã. Por último, um casal passou caminhando. A
mulher não escondeu o olhar e então o homem não hesitou ao chamar aqueles
moradores de “vagabundos”. Foi inevitável, porém, não lastimar aquele
comentário. Foi inevitável porque depois de tantas lutas e depois de tanto se
falar acerca do tema, tudo o que restou de opinião para aquele sujeito se
resumiu, única e exclusivamente à palavra “vagabundos”. De forma mais sintética,
percebi que mesmo após 500 anos, o índio ainda era um ser capaz de causar
estranhamento e curiosidade, logo ele, o primeiro habitante do Brasil.
Este
estudo nos levou para além do nosso mundo. Aliás, que mundo é esse, onde é
preciso uma tropa de choque para que percebamos que existe índio no espaço
urbano?
Depois
dessa hora de observações, entrei na Aldeia. O Filipe conversava com o cacique
Paulo, de 39 anos, pertencente a uma tribo do Amazonas. Percebi que ele calçava
chinelos do Mickey. Perguntamos coisas como a vida pessoal de quem mora naquele
espaço, se eles se relacionavam como amigos, se namoravam etc. Ele respondeu não
se importar com as opções sexuais e outras temáticas relacionadas à intimidade dos
moradores. E mais que isso, qualquer um poderia viver ali. Essa atmosfera de
liberdade perambulou pela Aldeia Maracanã em todos os dias em que a visitamos.
Todos podem fazer o que bem entenderem e isso é um reflexo da aversão que eles carregam
pelo governo. Paulo, graduado em Administração Pública e mestrando pela UFF, me
pareceu bem mais articulado do que os outros com quem tive a oportunidade de
conversar, ainda que todas as perguntas feitas o levassem à política. Por fim,
me marcou a frase em que no meio da conversa afirmou: “Nós nascemos
governantes, não nascemos governados.”
O
cacique nos pediu então licença, pois sua namorada iria buscá-lo para que
fossem à praia.
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