quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

Nathanael Sampaio

Diário de Campo-Primeiro dia

        Fiquei muito ansioso para conhecer Aldeia Maracanã, já que havia acompanhado de “perto” (através das redes sociais, jornais, sites, TV) toda a situação da desocupação e não pude comparecer presencialmente à Aldeia nesse período. E com o desenrolar dos acontecimentos do mês de junho, tive a oportunidade de filmar um dos índios da Aldeia no protesto do dia 26/06/2013 e ele em especial parecia determinado e seguro da retomada do espaço que lhes foi tirado de forma abrupta e inconsequente. O que aconteceu logo em seguida, os índios voltaram e com eles vários apoiadores. O que mais me surpreendeu foi a quantidade de pessoa que estavam ali lutando pela causa indígena e também o rodizio que eles fazem para garantir que sempre fique um grupo na Aldeia. Além de resistência cultural, a ocupação daquele espaço proporciona visibilidade e provoca um governo que em nome do capital os querem longe dali. Apesar de já estar no Rio a 1 ano e meio, o meu primeiro contato com o estádio do Maracanã ocorreu no mesmo dia da visita como pesquisador e puder constatar a diferença de tratamento dispensado ao estádio e a Aldeia.
        Antes de chegar à Aldeia, procurei não idealizar nada e nem supor nada. No contato com as pessoas que circulavam pelo local notei um certo estranhamento deles para com a minha pessoa, talvez pelas minha feições totalmente indígenas, mas uma grande simpatia dos índios comigo, principalmente Potira, esposa de José Guajajara, que se formou em Letras pela UFRJ e faz mestrado em linguística também na UFRJ. O prédio onde eles vivem está em avançado estado de decomposição, eles só tem um refletor que garante toda a iluminação do casarão e uma torneira para todos. Fiquei pensado em como conseguiam viver daquela forma e me senti um pouco triste de não poder fazer nada mais efetivo e participativo do que ficar postando algum assunto relacionado à causa indígena nas redes sociais. Conversamos com duas estudantes: uma da UFF e a outra da UFRJ. Elas não nos deixam filmá-las, percebo que elas não nos dão muita atenção parecem não acreditar que nosso trabalho é sério e comprometido com essa modificação que é trazer os povos indígenas à vida urbana. Quando vamos tentar falar com José somos um pouco insistentes e vejo que ele se incomoda, a mesma desconfiança das meninas. Mesmo assim ele conversa conosco e parece um pouco cansado daquela lutar mas sabe que tem que permanecer firme, ele ao que parece é o índio mais velho na Aldeia e tenta dar o exemplo. Conversamos uns 40 minutos intercalando suas falas com às minhas e de Filipe e noto que ele já começa a nos ouvir com mais atenção e com frequência nos interrompe para nos dizer sua impressão.
        Saímos da Aldeia e fico com a certeza de estar no lugar certo e fazendo justamente a coisa certa. O que mais me incomodou foi a desconfiança de todos e o incomodo que a população flutuante sentiu com minha presença. A desconfiança tivemos que ser pacientes e tentar aos poucos mostrar a seriedade do trabalho. Já o incomodo pelo menos hoje permaneceu, quem sabe ao longo das próximas visitas ele comece a se desfazer. Pode ter haver com a idealização errada das pessoas sobre o indígena e o fato de na mente das pessoas, o índio se encontrar estagnado no tempo. Mas a verdade é que ele merece estar aqui tanto quanto qualquer pessoa.              

                                

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Gabriel M. Faria 

14 de novembro de 2013

No táxi, a caminho da aldeia, o motorista sequer sabia que os índios continuavam ali, assim como muita gente com a qual conversei antes das visitas.
Foi a primeira vez que vi a aldeia sem os muros e toda aquela mata que havia dentro, foi automático ver aquele " intruso"  - numa paisagem tão acéptica como a dos arredores do novo maracanã - e tentar calcular quanto tempo eles ainda teriam ali até que o Estado "limpasse" a área.  
A todo momento me pegava tentando imaginar que tipo de ligação poderia ser tão forte para que eles quisessem tanto aquele prédio em ruínas, pois a minha interpretação sempre foi a de que museu não é e nem nunca será um lugar que abrigue qualquer tipo de cultura, para mim museu é exposição, e somente, e no caso do museu do índio, até onde eu sabia, não era diferente, e foi depois do abandono e a consequente desativação que aquelas pessoas passaram a viver ali, mas eu sei mesmo de muito pouco sobre o caso, então tentei deixar a mente aberta.
Bia fazia fotos, quis saber o que ela achava que deveria ser a questão central, e quanto mais conversávamos mais nos perdíamos, foi a minha impressão. Desde o início deixei claro para Nathanael e Filipe que a questão, para mim, não estava esclarecida, e a outra dúvida que nos consumia era: como não fazer um documentário?
Quando entrei no prédio havia uma fogueira entre duas fileiras de bancos, ao fundo uma mesa com quem me pareciam ser os líderes. Um homem e duas mulheres.
Discutiam muito sobre os índios "vendidos" que aceitaram as propostas do governo, insistiam que não sairíam dali, e frequentemente os convidados brancos discutiam a questão da resistência, relembrando atos heróicos da aldeia, e defendendo a permanência dos mesmos.
Me chamou a atenção as constantes discussões sobre identidade indígena dentro da aldeia, e principalmente os jovens classe média ali dentro. Tentei expulsar os preconceitos, mas ao ver um conhecido meu, que já trabalhou comigo, ex-aluno de filosofia da ufrj, sem camisa, pintado como índio e repetindo (às vezes convocando) os gritos índigenas entre uma fala e outras mais contundente, eu desisti de vencer meu preconceito. Achei de uma idiotice profunda, ainda mais depois de entrar em contato com essa pessoa e ela sequer ter noção das atividades que seriam feitas durante a semana na aldeia.
Mas em geral o fato dos não-indígenas estarem ali não me afetava, tanto que ao conhecer Francis não estranhei: é um negro, vindo de quilombos de Minas e Espírito Santo para a Aldeia Maracanã. Me pareceu muito verdadeira a sua relação com tudo ali, e se coubesse a mim esta afirmação eu diria que dentre os indígenas ali presente, Francis com toda certeza era um deles.
Sem uma questão definida para averiguar resolvi observar tudo, e continuava sem entender o que motivava tanto um grupo indígena de várias etnias a se manter dentro de uma cidade como o Rio de Janeiro (ou qualquer outra grande cidade), já que pra mim eram culturas baseadas em suas relações com a natureza.
O cheiro do lugar, que tanto incomodou alguns membros da equipe, não me causou qualquer sensação de estranhamento, Francis tinha um cheiro forte, mas isso tampouco me incomodava.
Não conversamos com ninguém, mas ficamos sabendo, por intermédio de Francis, sempre muito atencioso conosco, que haveria um mutirão para a construção das ocas, além de aula de guarani e uma mesa de diálogos com as mulheres da aldeia, tudo isso no sábado, o que nos seria muito útil, tanto para o material filmado quanto para a pesquisa. As questões que eu construí ali para levar ao grupo eram as seguintes: saber de onde ver a subsistência daquele grupo, onde compram suas comidas?, a falta de comida típica era um problema?, as crianças iam ao colégio?, sofriam algum tipo de preconceito, de pais, colegas ou professores? E o que pretendem fazer com o espaço, numa possível reforma do mesmo, no sentido de subsistência?
Houve uma roda para danças e cantos ao final da discussão, e pessoas de todos os meios apareceram e participaram, me chamaram para entrar mas preferi ficar de fora olhando, o que foi uma besteira, deveria ter me juntado.

Saí de lá pensando até onde eles teriam realmente direito àquele lugar, sem julgamentos de certo ou errado, somente tentando ver a situação muito de fora, mas como a neutralidade é impossível eu entendi que não entendia nada, e que não havia feito pesquisas e entrevistas suficientes para ter sequer uma rasa noção sobre o que é aquela luta ali. 
Daniele Cappelli
08/11
Bizarro. Essa foi a primeira palavra que me veio à mente quando chegamos à Aldeia. Rodeados por uma atmosfera macabra e observados por uma ruiva no andar de cima, fomos nos aproximando até entrar, do outro lado. Estava achando aquilo tudo uma má ideia, mas todas as outras tinham falhado, então não tínhamos escolha.
Ao passar pelo grande portão de metal, encontramos com a Maya. A Maya e seu rosto enrubescido, parecendo nervosa. Fiquei apreensiva porque ela tinha entrado lá antes de todo mundo. Depois de confessar que um índio a tinha abraçado, fiquei muito receosa de entrar. Alguém chegou a dizer "ah, não, gente! não vou entrar", creio que tenha sido a Bia. É, eu queria dizer a mesma coisa, mas estava paralisada de medo, ou outro sentimento que não consigo classificar, mas que não me deixava falar.
Apesar da paralisação e clara vontade de desistir, acabamos entrando. O cheiro era terrível, de algo sujo, não sei bem o que. Não se assemelhava a cheiro de mendigo ou xixi, então não sei conceituá-lo. Havia um pajé fumando um cachimbo, apresentando umas artes e contando umas histórias. Também vi outros fumando, mas não faço ideia do que era. Acho que maconha. Do nada, chega uma caravana (?) de estudantes, por volta de umas 15 pessoas, que realmente queriam estar ali - porque obviamente eu estava ali por obrigação - e sentaram confortavelmente nos bancos nada confortáveis da Aldeia. Escutamos o líder deles, que era professor da UERJ, eu acho. Ele era de Manaus mas veio pro Rio fazer mestrado. Ele deu uma palestra sobre política, o direito dos índios, e etc. Aquilo me impactou. O cara era muito inteligente. E era índio. E era estudado!
Ok, a imagem do índio dormindo eternamente em berço esplêndido não havia saído da minha cabeça desde então. Acho que o que vinha a minha cabeça era: "São todos vagabundos. Se trabalhassem, simplesmente conseguiriam viver e não precisariam de ajuda de ninguém".
O que me intrigou, além de tanta coisa, foi o fato de não terem só índios na Aldeia. Havia pessoas de classe média, vestidas de hippie e punk, dividindo aquele espaço com eles. Até então, não consegui entender o porquê disso, mas minha mente dizia: “Tudo maconheiro!”
Fui embora. Cheia de coisas na cabeça, cheia de opiniões para serem revistas.

20/11
Passei dias pensando na minha primeira visita à Aldeia. Alguns dos meus colegas conseguiram visitá-la outra vez, mas não pude ir por causa do meu trabalho. Estranho, porque isso foi criando uma ansiedade a respeito de quando eu poderia pisar lá de novo.
Pois bem, chegou o dia de ir pra aquele lugar novamente. Era um sábado de feriado bem ensolarado, diferente do dia nublado que havia visto na última vez. Quando avistei a Aldeia de longe, ela não parecia assustadora como antes. Era apenas uma casa velha necessitando de sérios reparos. Entrei pelos portões de metal, agora sem medo, e avistei a Bia e o Filipe lá no fundo, conversando com um índio. Me aproximando dele, tive vontade de me apresentar. “Olá, eu sou a Dani”, disse. Ele prontamente estendeu a mão e disse “Sou o Paulo. Prazer, Dani”.
Ficamos escutando o Paulo por muitos minutos. Ele nos contou muitas histórias e de novo pude perceber o quão inteligente um índio poderia ser. Paulo contrariava todo o estereótipo que eu tinha gravado em minha mente, o estereótipo das escolas onde aprendemos a respeitar o índio ao mesmo tempo que sabemos que ele é inferior a todos nós. Os outros meninos da equipe foram chegando e meu medo havia passado. A Aldeia não tinha mais atmosfera de terror. Passada a conversa com o Cacique Paulo (eu disse que ele era Cacique? Pois é. Fiquei impressionada em como eles administram a Aldeia de forma que tenham vários caciques, mas não as subdivisões causadas por múltiplas lideranças. Os índios atuavam em conjunto, e em conjunto comiam, dormiam e realizavam seus atos ritualísticos) fomos conversar como equipe. Cada um havia mudado suas opiniões a respeito daquele lugar. Não havia mais motivos para sairmos correndo. Na verdade, nos sentamos confortavelmente nos bancos desconfortáveis da Aldeia e nos apropriamos dela também.
Entrando no prédio da Aldeia, encontramos com um homem, negro, entre 20 e 30 anos, cabelos meio black power, colar de sementes. Fiquei pensando em quem poderia ser esse sujeito. Ele não era índio, mas tinha escolhido morar lá. Fizemos uma rápida ambientação e desatamos a perguntar coisas para ele. Descobrimos que ele tinha vindo de outro estado para morar na Aldeia. Quando ouviu sobre ela na televisão, ele a enxergou como refúgio e não pensou duas vezes pra realizar sua mudança. Como ele tinha sofrido. Enquanto ele contava o que a polícia tinha feito com ele (e outros amigos), meu coração se enchia de compaixão. Compaixão? Não sei, mas algum sentimento que me dava vontade de acolhê-los e de fazer justiça em face de tanta barbaridade. Uma das vezes que foi preso, ele ouviu policiais conversando “Dava pra gente desovar esses caras aí”. Até que ponto ele estava falando a verdade, eu não sei, mas me pareceu muito convincente. Convincente até demais.
Depois de conversarmos com ele, demos um passeio pela Aldeia. Conhecemos o lugar onde eles dormem, tomam banho, plantam as coisas. Como disse, os índios dividem suas colheitas. Aos sábados, eles cozinham pratos típicos de sua região e todo aquele que quiser se achegar e comer, pode comer. O lugar onde eles dormiam era cheio de barracas espalhadas por todos os lados. Sim, aquelas barracas de camping. No quarto ao lado, tinham umas mudas de planta e uma mini-horta. Passeamos por todo o lugar e depois nos encontramos lá fora de novo. Chegou a hora de ir embora. Nossa "experiência" havia acabado e toda minha concepção sobre os "índios urbanos" havia mudado com ela.

terça-feira, 3 de dezembro de 2013

Beatriz Araújo

08 de novembro de 2013
O primeiro dia no campo foi revelador para todos que estiveram presentes. Ao chegarmos, foi estranho ver a Aldeia de perto. É absolutamente normal passar de carro ou ônibus e olhar de longe. Mas entrar lá nunca fez parte dos meus planos. Apesar de ter aprovado a ideia, ao longo da visita senti que o lugar não tinha nada de aconchegante, além de estar repleto de pessoas fora do padrão médio capitalista, suas roupas, seus cabelos, as aparências de uma forma geral não nos eram normais. O cheiro lá dentro era bem forte e desconfortável, uma mistura de bebidas e fumos.
 Quem veio nos receber foi a Mayara, que havia chegado antes do resto do grupo. Ela começou a contar como observou tudo lá dentro, desde a aparência do lugar até a forma como ofereciam bebida a ela. Discutimos entre nós a relevância do trabalho dentro da Aldeia e decidimos entrar. Logo de cara descontruí meus paradigmas. O detentor da fala, um homem de aparência branca, estava caracterizado de índio e dando uma espécie de palestra acerca da arte indígena. Ao redor, não havia apenas os índios que eu imaginei (pessoas de pele morena, cabelos lisos e olhos levemente puxados), mas também adolescentes punks e negros. O que mais me chamou a atenção foi o grupo de jovens. O que um grupo de punks teria a ver com a cultura indígena? Porque pessoas inseridas desde o nascimento na cultura capitalista escolhem frequentar um não-lugar? Um espaço que não corresponde ao todo que o envolve e o pressiona. Esse olhar pessoal não foi, no entanto, de crítica, mas apenas de curiosidade. Por que a causa indígena ganhou tanta voz? Qual é relação que aquelas pessoas têm de tão importante com aquele espaço, a ponto de enfrentar a polícia e o governo? Levei todas essas dúvidas para casa, além de mais uma, gerada da fala do próprio branco descrito no início. No seu discurso, algo de muito forte marcou a visita do ponto de vista antropológico: em meio à fala, ele bate no peito e grita: “ÍNDIO É RAÇA PURA!”. Uma ideologia “ariana” tão enraizada que ele mal percebeu que aquele discurso não pertencia ao seu grupo.

 Com tantas questões em mente, é chegada a hora de produzir respostas.

14 de novembro de 2013
Em primeiro lugar, nessa segunda visita percebi o quanto é involuntário produzir perguntas todo o tempo em um estudo etnográfico. Elas me saltam muito mais facilmente do que as respostas. Cheguei primeiro desta vez. Ninguém me notou muito, já que um debate estava a todo vapor lá dentro. Aliás, ninguém me notou muito, até que eu tirei a câmera da mochila. Quem se aproximou de mim foi o Francis, um rapaz negro, bem simples, e com um aspecto aparentemente simpático. Identifiquei-me e comecei a puxar uma conversa. Mal sabia eu que aquela seria uma história única. Francis me contou ser de Minas Gerais, mas que durante a infância viveu em uma comunidade quilombola no Espírito Santo. Depois de um tempo sentiu que não tinha ainda o “seu” lugar no mundo. Foi quando descobriu a Aldeia Maracanã e decidiu se mudar para o Rio de Janeiro. Pensei na hora porque aquele espaço era um “não-lugar” pra mim (em meio à paisagem urbana do Rio e agora do lado do Maracanã-padrão-FIFA) e um lugar pra ele viver. Isso será muito importante para as minhas próximas perspectivas e para o desenvolvimento desta etnografia. Mais do que isso, a história de um menino negro que passa a infância em uma comunidade quilombola e mais tarde em uma aldeia indígena só poderia ser mesmo brasileira!
Ao meu redor, muitos artesanatos à venda, um notebook e um carrinho de bebê meio destruído. Havia muitos troncos também, todos trazidos da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Eles serão usados para a construção de ocas. Segundo os moradores, caso o governo queira reformar o prédio e fazer isso como desculpa para despejá-los novamente, as ocas serão usadas para que eles não deixem a Aldeia em hipótese alguma. Na visita de hoje senti muita verdade no discurso de Francis, mas ao mesmo tempo senti que não era muito bem articulado, até porque a todo momento, qualquer assunto o levava para a temática política. Depois de um tempo começou a parecer um pouco engessado.
Tirei algumas fotos da fachada e percebi o quanto a arte significa para aquele grupo. Todas as pinturas, a maioria delas coloridas, continham uma mensagem que sintetizasse o sentimento de quem mora ali. Por isso mesmo não é muito surpreendente ler frases como: “Fora Cabral” e “Liberdade aos presos políticos”. Outras tinham caráter menos negativo e político, mas não deixavam de propor mudanças por um novo mundo: “Germinando vida neste mundo cinza” e “Só com respeito à origem se constrói o novo”. Durante todo o tempo eu ouvia gritos de “Aldeia resiste!”, especialmente quando, puxando o coro, alguém sentia a necessidade de reforçar a última fala apresentada.
Lá dentro, o debate estava acalorado e novamente a diversidade me chamou a atenção. Um dos homens que mais falava era branco e se vestia com camisa e calça social. Enquanto isso, uma mulher proclamava: “Eu estava aqui (no dia da ocupação policial), levei choque! Não posso ser indígena?” O homem do início do parágrafo respondeu: “Sim, pode”. E então ela fala algo que marca a necessidade de aceitação dentro de qualquer grupo: “Não é o senhor, branco, que vai dizer isso, são os outros indígenas.” Estava claro ali, que apesar de frequentar a aldeia e defender a causa, ele não representava aquela coletividade. Antes de ir embora, no entanto, uma roda com todos foi feita. Havia muitos chocalhos, uma fogueira no meio e um representante indígena vestindo cocar e dançando de uma maneira bem típica, de acordo com os referenciais do senso comum.

20 de novembro de 2013

           Na terceira visita à Aldeia resolvi observar (e fiz isso durante uma hora inteira) qual era a reação das pessoas que praticavam algum tipo de atividade no entorno do Maracanã ao se depararem com o lugar. Estava realmente quente. E como eu já esperava, a curiosidade maior vinha sempre das crianças. Algumas só ficavam olhando, outras faziam perguntas aos pais e estes por sua vez desconversaram todas as vezes. O que até é compreensível considerando que uma criança de dois anos talvez precisasse de mais do que dois anos para entender o que realmente significa o espaço Aldeia Maracanã. Por último, um casal passou caminhando. A mulher não escondeu o olhar e então o homem não hesitou ao chamar aqueles moradores de “vagabundos”. Foi inevitável, porém, não lastimar aquele comentário. Foi inevitável porque depois de tantas lutas e depois de tanto se falar acerca do tema, tudo o que restou de opinião para aquele sujeito se resumiu, única e exclusivamente à palavra “vagabundos”. De forma mais sintética, percebi que mesmo após 500 anos, o índio ainda era um ser capaz de causar estranhamento e curiosidade, logo ele, o primeiro habitante do Brasil.
Este estudo nos levou para além do nosso mundo. Aliás, que mundo é esse, onde é preciso uma tropa de choque para que percebamos que existe índio no espaço urbano?
Depois dessa hora de observações, entrei na Aldeia. O Filipe conversava com o cacique Paulo, de 39 anos, pertencente a uma tribo do Amazonas. Percebi que ele calçava chinelos do Mickey. Perguntamos coisas como a vida pessoal de quem mora naquele espaço, se eles se relacionavam como amigos, se namoravam etc. Ele respondeu não se importar com as opções sexuais e outras temáticas relacionadas à intimidade dos moradores. E mais que isso, qualquer um poderia viver ali. Essa atmosfera de liberdade perambulou pela Aldeia Maracanã em todos os dias em que a visitamos. Todos podem fazer o que bem entenderem e isso é um reflexo da aversão que eles carregam pelo governo. Paulo, graduado em Administração Pública e mestrando pela UFF, me pareceu bem mais articulado do que os outros com quem tive a oportunidade de conversar, ainda que todas as perguntas feitas o levassem à política. Por fim, me marcou a frase em que no meio da conversa afirmou: “Nós nascemos governantes, não nascemos governados.”
O cacique nos pediu então licença, pois sua namorada iria buscá-lo para que fossem à praia. 

Filipe Santos

8/11 – 1° dia
O primeiro ângulo da AM avistado foi o lateral: eu, Daniele e Beatriz estávamos contornando o prédio para entrar. Mayara, que chegara antes e decidiu entrar com conta própria, relatou que o lugar era “trash”. Preferi não argumentar muito: deixei que o grupo decidisse o que iria fazer. Entrando no perímetro da AM, constatei que o prédio tinha vidros e janelas quebradas, e suas paredes pintadas com diversos escritos e desenhos: ninguém veio nos receber. Mayara veio nos encontrar fora do prédio: contou sobre umas “cantadas” que levou de algumas pessoas, além da suposta condição imprópria dos mesmos: ao que parece, estavam alcoolizados e fumavam maconha. Particularmente, não sentia nenhum cheiro reconhecível de maconha: tinha algum cheiro estranho, mas não totalmente desagradável. Daniele e Beatriz hesitaram e eu apenas perguntei: vocês querem entrar? Mayara e Beatriz assentiram, e a primeiro puxou todos para dentro: senti-me aliviado e preocupado, me perguntando o que aconteceria a seguir. Entramos no prédio e ficamos no saguão: pessoas das mais diversas (tinha um grupo meio classe-média underground também) começaram a chegar e havia até crianças pequenas. Tivemos sorte: além de uma oficina de pintura (que um índio começou a explicar), haveria uma palestra sobre a história do local (que outro índio, graduando de História pela UERJ iria ministrar) e o projeto da UIAM. Não simpatizei com o primeiro: ele tinha colares, brincos, usava um chapéu, fumava um cachimbo, mas não me convencia: ele falava demais. O segundo chegou, trazendo vários alunos e professores da UERJ que sentaram em bancos e se prepararam para ouvir: nesse eu confiei mais, usava cocar, colar e um ornamento na cintura: eu queria entrevistá-lo. E ele começou a palestrar: procurei gravar tudo, mas a bateria da câmera acabou no meio da palestra. Mayara, que tirava fotos, me deu o gravador. Quando ele terminou, Daniele e Beatriz já haviam ido embora: ficamos eu e Mayara entrevistando. Primeiro, um anarco-punk que estava responsável pela oficina de pintura e morava lá fazia alguns meses. Depois, gravamos e filmamos duas danças (coré, segundo os índios). Procuramos alguém que nos indicasse quem eram os índios residentes e entrevistamos um homem alto e gordo: não falou muito, mas pediu que falássemos com um cacique (um senhor baixinho e simpático que falava espanhol). Seu relato foi longo e muito interessante: ele era de uma tribo isolada do Acre e contou sobre política, Funai e as dificuldades atuais da comunidade indígena. Durante a conversa ele chamou uma moça: ela nos passou vários contatos por Facebook. Ainda outro índio chegou e conversamos rapidamente com ele: era advogado. O índio da palestra tinha que voltar para a UERJ, mas nos passou seu celular. O cacique pareceu gostar muito de nós: pediu para que tirássemos uma foto com ele no fogo (que, disse ele, é sagrado para os índios). Ele se ornamentou e, enquanto cantava, posamos para a moça tirar nossa foto. Aí, nos despedimos: já estava anoitecendo e a luz era precária no prédio.

10/11 – 2° dia
Nesse dia, fomos apenas eu e Nathanael, chegando a tarde, pela hora do almoço, e estava havendo um mutirão para pintar a fachada do prédio: as pessoas tinham participado da oficina de pintura da última visita. Apresentamos-nos a José Guajajara, cacique do Maranhão, residente da Aldeia, nos orientando a conversar com um grupo de mulheres que estava em uma oca. Lá, havia 3 mulheres e 2 crianças. Perguntamos se poderíamos filmá-las: eles não aceitaram, mas aprovaram que gravássemos a conversa por áudio. A mulher que parecia mais velha, com uma criança, preferiu se retirar. A primeira nos contou sua história: vinha do Equador, morando em vários locais, até chegar ao Rio, estava se graduando em Sociologia na UERJ quando conheceu movimentos sociais, como a Aldeia, trancando sua graduação. A segunda, sua companheira, era de Niterói e cursou Produção Cultural na UFF, tendo contato com os movimentos desde a graduação também. Juntas, elas moram na Lapa com a filha pequena: relataram que antes, eram mais engajadas na Aldeia, chegando a residir, mas que agora estavam mais como colaboradoras, ainda que amigas. A filha fazia aulas de tupi e canto na Aldeia. Depois, fomos conversar com José: ele nos levou a parte de trás do prédio e nos sentamos para ouvi-lo.  Ele contou sobre a história do prédio e do movimento Aldeia Maracanã Resiste: as desapropriações, negociações, embates com a polícia e a ocupação. Além disso, revelou que a relação política que existe na Aldeia é apartidária, pois eles enxergam não ser uma via possível para resolução dos problemas dos povos originários.

16/11 – 3° dia
Novamente, eu e Nathanael comparecemos a essa visita. Preferimos chegar mais cedo pois haveria um mutirão para levantar ocas que, até o momento da nossa saída, não havia ocorrido. Primeiramente, nos apresentamos ao índio Axãnica, que nos concedeu uma rápida entrevista. Depois, fomos conversar com uma moça e um rapaz que estavam na oca, e visitavam o local para ajudar: também eles já conheciam pessoas da Aldeia por visitas anteriores. A moça, Mariana, psicóloga formada na UERJ, relatou suas motivações para estar ali, que além de política, incluíam fatores familiares: ela buscava reatar laços com a avó materna, índia do Acre, que teve seus filhos separados dela a força. O rapaz, Rodolpho, geólogo, socialista declarado, fez seus relatos, fortemente baseados no posicionamento político. Nathanael, após isso, ajudou na horta que estava sendo preparada por outros integrantes da Aldeia. Conversamos, os 4, sobre diversos assuntos, sem gravar, explicitamente uma ou outra pessoa.  Os 2 saíram e retornamos a conversar com Axãnica, nos fundos do prédio: ele ajudava a preparar o almoço para os residentes. Enquanto falávamos, um jovem chegou e pareceu ter intimidade com o índio: cumprimentou-o pelo nome e “celebrou uma medicina”, demonstrando reverência. Escolhemos chamá-lo para conversar também: após a fala de Axãnica, ele contou que cursava Filosofia na UFRJ, tendo interesses expressamente culturais em estar ali. Axãnica contou-nos que várias são as pessoas que circulam na Aldeia, desde índios, apoiadores e estudantes residentes, envolvendo pessoas das mais variadas classes, credos e formação: posicionando a Aldeia como espaço democrático de discussão e de atividades ligadas a cultura indígena. Ele nos deixou para atender uma chamada ao celular e resolvemos que era hora de ir embora.

20/11 – 4° dia

Pela primeira vez, todo o grupo estava reunido para uma visita à Aldeia: em compensação, devido ao feriado (e ser meio de semana) não havia tantas pessoas para conversarmos. O primeiro entrevistado foi Paulo Apurinãme, cacique do Amazonas: como fui o primeiro a entrar, acabamos por conversar um pouco sobre relacionamentos. Esse assunto guiou a introdução da entrevista, que logo após, bandeou para política: ele é candidato a senador pelo PSOL-AM. Depois da conversa, nos reunimos para definir as diretrizes do trabalho. Procurando mais pessoas, entrevistamos uma menina que lavava louças na parte externa e entramos no casarão: conversamos com Francis, que nos contou sobre sua experiência em comunidades quilombolas, além da sua residência na Aldeia: um fato interessante foi o relato do revezamento que existe para que a Aldeia nunca fique “desguarnecida”. Ele acabou nos levando ao andar superior do prédio e tivemos oportunidade de explorar mais o espaço.

Mayara Camera

08 de Novembro de 2013


Eu não tinha ideia de onde ficava a Aldeia Maracanã. Logicamente que estaria localizada no entorno do maior estádio do mundo, mas eu não sabia ao certo em que altura. Nesse contexto, acabei caminhando até quase completar a volta inteira de 1,8km, quando finalmente me deparei com uma estrutura decadente, quase sombria. Em meio a tantas obras de revitalização com tudo muito novo e limpo, a Aldeia parece deslocada.
Eu estava sozinha e o relógio batia 16:40h. Deveria me encontrar com outros colegas de classe para dar início a um trabalho etnográfico para a disciplina de antropologia. Cheguei antes de todos e fiquei parada a observar o local. Frente a algo novo e inusitado, milhares de pensamentos cruzaram a minha cabeça. As primeiras coisas com as quais me deparei foram muitos pombos e gatos, alguns vivos, outros mortos. O cheiro era horrível. Tudo muito estranho. Entre silêncio e ausência de movimento, comecei a avaliar a possibilidade de o local estar vazio. Fora os animais em estado lastimável que se encontravam na parte externa, realmente não havia qualquer outro sinal de vida. Bati algumas fotos e optei por me encaminhar para a lateral direita.
            Foi quando visualizei um garoto que, com seus 20 anos, surgiu em uma das janelas, passando o dedo freneticamente na tela touchscreen de seu smartphone. A aparência não enganava: típico jovem de classe média, com camisa xadrez e uma quantidade considerável de piercings espalhados pelo rosto. Gritei um “hey” e pedi para que viesse ao meu encontro, sugestão que foi prontamente atendida. Perguntei pelos residentes e sobre outras pessoas que, além dele, estariam ali dentro. Enquanto conversávamos, fomos andando em direção à lateral esquerda, onde se encontra a entrada física da construção. Ele adentrou primeiro e me informou que mais tarde haveria um evento ali. Fui apresentada a um homem com cerca de 40 anos que se disse frequentador assíduo... Professor de história graduara-se num passado não tão remoto pela Universidade Federal Fluminense. Foi ele quem me levou a dois dos índios que, pelo que entendi, eram importantes e que por isso, a quem eu deveria me reportar a fim de solicitar autorização e dar início ao trabalho documental.
            Os índios foram solícitos, mas passei por uma espécie de “saia justa” quando um deles questionou se meu objetivo com aquilo não seria angariar recursos que logicamente não lhes seriam repassados. “– Conheço jornalistas.”, disse. Retruquei que era estudante e que o objetivo era de fato a etnografia e que, como estudante, eu nem tinha malícia para tirar vantagem da situação. Apesar de ter ficado claro que não o convenci, a autorização me foi concedida.
Eu não sabia bem o que fazer ali e me sentia deslocada, observando.  Num dado momento me foi oferecido um líquido que preenchia uma garrafa pet imunda e velha, cujo cheiro denunciava o alto teor alcoólico. Lancei mão da velha desculpa de que estava dirigindo e que, por isso, infelizmente teria de recusar a oferta.
A primeira coisa que me chamou a atenção quando adentrei a aldeia, foram as pessoas. Fora o menino com quem tive o primeiro contato, havia ali outros jovens que pude identificar como pertencentes à mesma tribo. Todos meio “punks”. Quero dizer que todos eram jovens estilosos, com cabelos coloridos, moicanos ou penteados trash e adornavam-se com coturnos de couro, spikes e afins. Me encaravam, mas não se dirigiram a mim. Apesar de não se abrir a nenhum tipo de aproximação, pareceram se divertir com os comentários dos índios importantes acerca do meu nome - MAYARA – de origem indígena. Também não pareceram incomodados com minha presença e tampouco curiosos. Compartilhavam o líquido e fumavam muito: cigarros e baseados de maconha. O famoso cachimbo da paz também estava rolando.
Comecei a observar as instalações. O hall em que nos encontrávamos era bastante amplo e muito bem iluminado. O pé-direito era imensurável. Eu chutaria que este chega a uns sete, talvez oito metros. O teto é todo em madeira, bem rústico. Está em péssima condição de conservação, assim como todo o local. O piso era um composto de cimento queimado com areia e aquelas pedras minúsculas que costumam nos incomodar quando entram em nossos sapatos. No final da parede do lado direito havia uma porta. Não tive a oportunidade de adentrá-la e não entendi muito bem o que poderia ter ali. Já na parede do lado oposto, havia duas outras passagens para o que entendi serem os quartos. Em uma delas notei de relance um garoto sentado com um notebook no colo. Jogava Counter-Strike. Na outra, não pude obervar absolutamente nada além de um espaço vazio com diversas outras passagens. Os cômodos não são preenchidos por móveis. Há um sofá, uma mesa e alguns bancos, daqueles de igreja, no hall. Tudo muito velho. Não há energia elétrica e a escuridão da noite é compensada por um refletor cujo longo fio alimenta-o de energia de algum lugar que não pude identificar.
Os colegas chegaram e, ao ouvir meus relatos sobre o que havia acontecido até então, alguns pensaram em desistir. Ficamos cerca de 20 minutos ponderando os prós e contras em prosseguir com o trabalho na aldeia. Ao chegamos a um consenso, adentramos o local. Estava me preparando para apresentá-los àqueles com os quais eu havia conversado quando, de repente, cerca de trinta pessoas adentraram o hall e começaram a se posicionar nos bancos. Um rapaz os identificou como estudantes de história que participavam de em um congresso da área que estava acontecendo na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Esse mesmo rapaz, por sinal, também era estudante da UERJ e carrega o orgulho de ser primeiro estudante indígena a entrar pela reserva de vagas para sua etnia.  
Após a apresentação houve uma palestra que durou não menos de uma hora. O índio estudante falou praticamente sozinho. Porém aqueles outros dois que julguei ”importantes”, permaneceram o tempo todo ao seu lado. Foram abordados diversos temas, todos obviamente correlacionados à cultura indígena. A Universidade Indígena foi colocada como o principal projeto e objeto de luta dos índios que alimentam o movimento da Aldeia Maracanã. Os estudantes não pareceram entediados. Gravamos o que pudemos em áudio e vídeo e aproveitei para fazer registros fotográficos.
Uma espécie de ritual finalizou a apresentação, com o que chamaram de roda, na qual três índios portando chocalhos puxavam cantos de suas tribos. Os estudantes e os frequentadores participaram.
Tentamos falar com o palestrante ao final da apresentação mas este, ainda que solícito, se limitou a deixar seu telefone para um possível contato posterior. Estava atrasado para a aula. Fomos em direção a um rapaz com dreads e moletom preto sentado em frente a uma mesa tosca em cima da qual haviam espalhadas dezenas de folhas de A4 com fotocópias de arte em grafite. Fomos informados de que no dia seguinte, sábado, haveria um mutirão para pintar as paredes internas da aldeia, misturando arte e frases de efeito relacionadas à luta local e fomos indagados se não poderíamos colaborar com algum dinheiro para a aquisição de latas de tinta. Concordamos.
Perguntamos ao rapaz se ele ali residia e sua resposta fora afirmativa. Prontos para prosseguir, ele nos questionou sobre estarmos gravando o áudio da conversa num aparelho de MP4 sem ter antes requisitado sua autorização. Me defendi  dizendo que assim que chegara já tinha comunicado que nosso objetivo era documentar em imagens e áudio e que tinha obtido autorização, ao que ele retrucou que cada um ali era um indivíduo e que ainda assim deveríamos tê-lo comunicado. Muito sem graça, concordei e me desculpei. “- Estamos tentando fazer o nosso melhor, mas também erramos. Em nenhum momento pensamos poder ofendê-lo, mas acredito que a situação servirá para que, ao longo de nossa carreira, erros como esse nunca mais se repitam.” Perecendo satisfeito com a resposta, o rapaz prosseguiu com a entrevista, autorizando a gravação. Identificou-se como membro do movimento anarcopunk do Rio de Janeiro e disse residir no local há cerca de quatro meses: “- Sou um nômade e, no momento, estou aqui defendendo não só a luta dos índios, como também aquela contra o capitalismo e a entrega da cidade a Eikes e Odebretchs”. Apesar de não ter conseguido precisar o número de habitantes, o rapaz disse supor que seja algo em torno de 30 pessoas; a convivência, segundo ele, é pacífica. Todos lutam pelos mesmos ideais, e os que discordavam em algum ponto foram aqueles que aceitaram o acordo oferecido pelo governo. Ele não esclareceu, no entanto, que acordo foi esse nem para onde essas pessoas teriam ido. Apenas ressaltou que o objetivo da dupla Cabral/Paes é fazer da Aldeia uma loja de Souvenirs e um café espaço wi-fi para que os turistas possam deixar alguns dólares a mais durante os jogos da copa. “– Mas e depois?”, questionou.
Finalizando a conversa com o anarcopunk, direcionamo-nos para um dos índios que haviam me recebido cerca de três horas antes. Um rapaz relativamente novo e com sobrepeso. Paulo, que é bacharel em direito, permitiu que o gravássemos tanto em imagem quanto e áudio. Aprendemos a lição!
Em meio à entrevista, três pessoas se juntaram a nós: um senhor de baixa estatura e feições indígenas bem típicas acompanhado por uma mulher, também na faixa etária dos 35 anos, além de um homem, apontado como um dos advogados da aldeia. A princípio todos ficaram parados a ouvir o primeiro falando até que num dado momento lhes foi oferecida a palavra, das quais fizeram uso por um bom tempo. A mulher foi quem nos ofereceu o contato de um número considerável de pessoas ligadas ao movimento e mostrou-se bastante entusiasmada com a nossa presença.
O sr. ressaltou que a imprensa já esteve algumas vezes no local mas que, apesar de tê-los deixado falar abertamente, nunca publicou o que eles diziam ou pleiteavam “- Eles sempre engavetam tudo que dizemos de importante para nossa luta.”, reclamou. Pediu que nos esforçássemos para que o que ele havia dito alcançasse ao maior número possível de pessoas. A mulher, que se disse frequentadora do local, afirmando morar numa comunidade de pescadores, pediu que mantivéssemos contato através das redes sociais. Foi bastante solícita ao nos fornecer os contatos de líderes e participantes do movimento de forma que puséssemos ampliar e enriquecer o trabalho.
Ao final nos foi oferecida pelo cacique, uma foto junto à fogueira que se encontra no meio do hall. O sr, que abandonara sua aldeia no Acre em prol da luta, ornamentou-se com cocar de penas de arara e outros adereços e pediu que posássemos junto a ele. “ – É uma tradição e lhes trará sorte.”

Rio de Janeiro, 20 de Novembro de 2013

Minha segunda visita a aldeia Maracanã ocorreu numa quarta-feira, feriado regional pela consciência negra. Num dia de clima absurdamente quente, todas as minhas expectativas acerca de possíveis atividades extras na aldeia foram frustradas. Cheguei lá por volta de 12:30h. Tinha acabado de almoçar uma salada leve, mas o mormaço em nada favorecia a disposição e o bom humor. Os integrantes do grupo já estavam presentes e entrevistavam Paulo Apurinã.
Eu já havia conhecido Paulo naquela primeira visita 13 dias atrás. Paulo é um dos índios “importantes” da aldeia. Filiado ao PSol, tem planos não muito distantes de se eleger senador pelo estado do Amazonas. Falou para nossa Nikon semi-profissional por mais de 60 minutos, praticamente sem interrupções. Entre realidade e utopia, figuraram em sua fala assuntos como construção de hidreléticas, demarcação de terras indígenas, má distribuição de renda no Brasil, corrupção, pobreza, ganância, dia-a-dia na aldeia, relação dos índios com o avanço tecnológico, constituição federal e o não cumprimento do item – “direitos iguais para todos”, projeto de tentar alavancar uma bancada considerável com representantes indígenas no congresso, etc.
Paulo Apurinã, pode-se dizer, é um camarada simpático e acessível. Bacharel em direito, mostra-se muito bem articulado. Argumentou que Belo Monte é um desperdício de dinheiro público, já que o rio Xingu não é perene, ou seja, as cheias são intercaladas por longos períodos de seca o que, segundo ele, praticamente inviabiliza o projeto. Este seria na realidade uma forma de entubar capital na mão de alguns cartas marcadas “- A conta de Belo Monte, ficará para os netos de vocês”, disse. Apesar de não ter revelado sua idade, tive a impressão que ele tem cerca de 35 anos.
Após Apurinã despedir-se para cumprir seu compromisso de ir à praia, ficamos por um tempo a discutir aspectos relacionados com os trabalhos da Escola de Comunicação. Encontrávamo-nos numa das únicas ocas que foram reerguidas após a passagem devastadora do Batalhão de Choque em março deste ano. Aproveitamos para documentar nossa conversa.
Estávamos distraídos quando surgiu, próximo a onde estávamos, uma mulher com cerca de 25 anos. Encaminhando-se para uma pia lotada de louça suja (leia-se imunda), situada na parte externa da aldeia, ao lado dos banheiros improvisados, a moça teve todos os seus movimentos observados por nós. Não hesitamos em fazer uma abordagem sutil e, simulando um papo casual, descobrimos que ela é residente de um abrigo situado na Cinelândia, mas também se intitula como frequentadora assídua da Aldeia. “- Gosto de vir aqui para ajudar”, declarou. Aberta à conversa nos permitiu realizar uma série de perguntas, as quais foram prontamente respondidas. Segundo Rosângela, que não fez objeção quanto a ser filmada, a Aldeia não tem líderes. Tudo é coletivo. Comem da mesma comida, sem nenhum tipo de diferenciação.
Adentramos a Aldeia e nos deparamos com Francislei, um mineiro de Teófilo Otoni, que Gabriel já tinha conhecido numa outra visita na qual não estive presente. Francislei foi de grande valia para o trabalho. Além ter esclarecido diversas dúvidas que levantamos, nos apresentou o local e todos os cômodos, incluindo a parte superior, a qual alcançamos após uma grande dose de coragem para subir através de uma escada sem degraus e com a estrutura decadente de ferro corroído.
 Admito que apesar de arriscada, penso que a aventura indiscutivelmente valeu a pena. Talvez essa tenha sido uma oportunidade única de descortinar aquele ambiente tão misterioso/sombrio que, talvez em poucos meses, não passe de escombros no chão. A percepção que tivemos é a de que a estrutura está totalmente comprometida, talvez sem chances de recuperação.
Após sair da Aldeia notei balaústres que indicavam um terraço, ao qual infelizmente não chegamos. Uma pena. Soubesse antes certamente teria tentado alcançá-lo.

Ao final do dia estávamos exaustos, não pelo tempo que ali passamos – mas vencidos pelo calor insuportável. Cheguei em casa passando mal e com sinais insolação, mas com 250 fotos impagáveis em minha Nikon.

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Um ver o mundo

Este é um blog sobre um estudo etnográfico na Aldeia Maracanã. Mas, antes que chegássemos até lá, a ideia inicial do grupo era que o trabalho fosse feito no Instituto Benjamin Constant. Para que nada seja perdido, eis a introdução que havia sido redigida para o fim.

"Para começar com o pé direito, é bom explicar bem as coisas. Este blog é parte de um trabalho etnográfico da disciplina de Antropologia a ser apresentado no final deste mesmo ano na Escola de Comunicação da UFRJ.Com esta ferramenta pretendemos fazer daqui um diário de campo, apresentar nossos problemas, ganhos e avanços. A página umveromundo.blogspot quer mostrar a realidade, ou o "vero", do italiano, verdadeiro mundo de quem sobrevive em uma sociedade altamente visual mesmo tendo perdido a visão durante a vida. A página umveromundo, pretende mostrar que apesar de prevalecente, este sentido é apenas um dos cinco, e portanto, uma forma de ver o mundo. A nossa função aqui é aprender com quem aprendeu a viver com os outros quatro. Para isso, percebemos o Instituto Benjamim Constant como excelente campo para histórias dos próximos capítulos deste trabalho. Desta forma, promover um maior entendimento dos códigos pertencentes a um grupo tão peculiar e seu cotidiano dentro e fora do IBC, será sem dúvida, o tema dos próximos meses de nossas vidas."