Mayara Camera
08
de Novembro de 2013
Eu
não tinha ideia de onde ficava a Aldeia Maracanã. Logicamente que estaria
localizada no entorno do maior estádio do mundo, mas eu não sabia ao certo em
que altura. Nesse contexto, acabei caminhando até quase completar a volta
inteira de 1,8km, quando finalmente me deparei com uma estrutura decadente,
quase sombria. Em meio a tantas obras de revitalização com tudo muito novo e limpo,
a Aldeia parece deslocada.
Eu
estava sozinha e o relógio batia 16:40h. Deveria me encontrar com outros colegas
de classe para dar início a um trabalho etnográfico para a disciplina de
antropologia. Cheguei antes de todos e fiquei parada a observar o local. Frente
a algo novo e inusitado, milhares de pensamentos cruzaram a minha cabeça. As
primeiras coisas com as quais me deparei foram muitos pombos e gatos, alguns
vivos, outros mortos. O cheiro era horrível. Tudo muito estranho. Entre
silêncio e ausência de movimento, comecei a avaliar a possibilidade de o local estar
vazio. Fora os animais em estado lastimável que se encontravam na parte externa,
realmente não havia qualquer outro sinal de vida. Bati algumas fotos e optei
por me encaminhar para a lateral direita.
Foi quando visualizei um garoto que,
com seus 20 anos, surgiu em uma das janelas, passando o dedo freneticamente na tela
touchscreen de seu smartphone. A aparência não enganava: típico jovem de classe
média, com camisa xadrez e uma quantidade considerável de piercings espalhados
pelo rosto. Gritei um “hey” e pedi para que viesse ao meu encontro, sugestão
que foi prontamente atendida. Perguntei pelos residentes e sobre outras pessoas
que, além dele, estariam ali dentro. Enquanto conversávamos, fomos andando em
direção à lateral esquerda, onde se encontra a entrada física da construção.
Ele adentrou primeiro e me informou que mais tarde haveria um evento ali. Fui
apresentada a um homem com cerca de 40 anos que se disse frequentador assíduo...
Professor de história graduara-se num passado não tão remoto pela Universidade
Federal Fluminense. Foi ele quem me levou a dois dos índios que, pelo que
entendi, eram importantes e que por isso, a quem eu deveria me reportar a fim
de solicitar autorização e dar início ao trabalho documental.
Os índios foram solícitos, mas
passei por uma espécie de “saia justa” quando um deles questionou se meu
objetivo com aquilo não seria angariar recursos que logicamente não lhes seriam
repassados. “– Conheço jornalistas.”, disse. Retruquei que era estudante e que
o objetivo era de fato a etnografia e que, como estudante, eu nem tinha malícia
para tirar vantagem da situação. Apesar de ter ficado claro que não o convenci,
a autorização me foi concedida.
Eu
não sabia bem o que fazer ali e me sentia deslocada, observando. Num dado momento me foi oferecido um líquido que
preenchia uma garrafa pet imunda e velha, cujo cheiro denunciava o alto teor
alcoólico. Lancei mão da velha desculpa de que estava dirigindo e que, por
isso, infelizmente teria de recusar a oferta.
A
primeira coisa que me chamou a atenção quando adentrei a aldeia, foram as
pessoas. Fora o menino com quem tive o primeiro contato, havia ali outros
jovens que pude identificar como pertencentes à mesma tribo. Todos meio
“punks”. Quero dizer que todos eram jovens estilosos, com cabelos coloridos,
moicanos ou penteados trash e adornavam-se com coturnos de couro, spikes e
afins. Me encaravam, mas não se dirigiram a mim. Apesar de não se abrir a
nenhum tipo de aproximação, pareceram se divertir com os comentários dos índios
importantes acerca do meu nome - MAYARA – de origem indígena. Também não pareceram
incomodados com minha presença e tampouco curiosos. Compartilhavam o líquido e fumavam
muito: cigarros e baseados de maconha. O famoso cachimbo da paz também estava
rolando.
Comecei
a observar as instalações. O hall em que nos encontrávamos era bastante amplo e
muito bem iluminado. O pé-direito era imensurável. Eu chutaria que este chega a
uns sete, talvez oito metros. O teto é todo em madeira, bem rústico. Está em
péssima condição de conservação, assim como todo o local. O piso era um composto
de cimento queimado com areia e aquelas pedras minúsculas que costumam nos
incomodar quando entram em nossos sapatos. No final da parede do lado direito
havia uma porta. Não tive a oportunidade de adentrá-la e não entendi muito bem
o que poderia ter ali. Já na parede do lado oposto, havia duas outras passagens
para o que entendi serem os quartos. Em uma delas notei de relance um garoto sentado
com um notebook no colo. Jogava Counter-Strike. Na outra, não pude obervar
absolutamente nada além de um espaço vazio com diversas outras passagens. Os
cômodos não são preenchidos por móveis. Há um sofá, uma mesa e alguns bancos, daqueles
de igreja, no hall. Tudo muito velho. Não há energia elétrica e a escuridão da noite
é compensada por um refletor cujo longo fio alimenta-o de energia de algum
lugar que não pude identificar.
Os
colegas chegaram e, ao ouvir meus relatos sobre o que havia acontecido até
então, alguns pensaram em desistir. Ficamos cerca de 20 minutos ponderando os
prós e contras em prosseguir com o trabalho na aldeia. Ao chegamos a um
consenso, adentramos o local. Estava me preparando para apresentá-los àqueles
com os quais eu havia conversado quando, de repente, cerca de trinta pessoas
adentraram o hall e começaram a se posicionar nos bancos. Um rapaz os identificou
como estudantes de história que participavam de em um congresso da área que
estava acontecendo na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Esse mesmo
rapaz, por sinal, também era estudante da UERJ e carrega o orgulho de ser
primeiro estudante indígena a entrar pela reserva de vagas para sua etnia.
Após
a apresentação houve uma palestra que durou não menos de uma hora. O índio estudante
falou praticamente sozinho. Porém aqueles outros dois que julguei ”importantes”,
permaneceram o tempo todo ao seu lado. Foram abordados diversos temas, todos
obviamente correlacionados à cultura indígena. A Universidade Indígena foi
colocada como o principal projeto e objeto de luta dos índios que alimentam o movimento
da Aldeia Maracanã. Os estudantes não pareceram entediados. Gravamos o que
pudemos em áudio e vídeo e aproveitei para fazer registros fotográficos.
Uma
espécie de ritual finalizou a apresentação, com o que chamaram de roda, na qual
três índios portando chocalhos puxavam cantos de suas tribos. Os estudantes e
os frequentadores participaram.
Tentamos
falar com o palestrante ao final da apresentação mas este, ainda que solícito,
se limitou a deixar seu telefone para um possível contato posterior. Estava
atrasado para a aula. Fomos em direção a um rapaz com dreads e moletom preto
sentado em frente a uma mesa tosca em cima da qual haviam espalhadas dezenas de
folhas de A4 com fotocópias de arte em grafite. Fomos informados de que no dia
seguinte, sábado, haveria um mutirão para pintar as paredes internas da aldeia,
misturando arte e frases de efeito relacionadas à luta local e fomos indagados
se não poderíamos colaborar com algum dinheiro para a aquisição de latas de
tinta. Concordamos.
Perguntamos
ao rapaz se ele ali residia e sua resposta fora afirmativa. Prontos para
prosseguir, ele nos questionou sobre estarmos gravando o áudio da conversa num
aparelho de MP4 sem ter antes requisitado sua autorização. Me defendi dizendo que assim que chegara já tinha
comunicado que nosso objetivo era documentar em imagens e áudio e que tinha obtido
autorização, ao que ele retrucou que cada um ali era um indivíduo e que ainda
assim deveríamos tê-lo comunicado. Muito sem graça, concordei e me desculpei.
“- Estamos tentando fazer o nosso melhor, mas também erramos. Em nenhum momento
pensamos poder ofendê-lo, mas acredito que a situação servirá para que, ao
longo de nossa carreira, erros como esse nunca mais se repitam.” Perecendo
satisfeito com a resposta, o rapaz prosseguiu com a entrevista, autorizando a
gravação. Identificou-se como membro do movimento anarcopunk do Rio de Janeiro
e disse residir no local há cerca de quatro meses: “- Sou um nômade e, no
momento, estou aqui defendendo não só a luta dos índios, como também aquela contra
o capitalismo e a entrega da cidade a Eikes e Odebretchs”. Apesar de não ter
conseguido precisar o número de habitantes, o rapaz disse supor que seja algo
em torno de 30 pessoas; a convivência, segundo ele, é pacífica. Todos lutam
pelos mesmos ideais, e os que discordavam em algum ponto foram aqueles que
aceitaram o acordo oferecido pelo governo. Ele não esclareceu, no entanto, que
acordo foi esse nem para onde essas pessoas teriam ido. Apenas ressaltou que o
objetivo da dupla Cabral/Paes é fazer da Aldeia uma loja de Souvenirs e um café
espaço wi-fi para que os turistas possam deixar alguns dólares a mais durante
os jogos da copa. “– Mas e depois?”, questionou.
Finalizando
a conversa com o anarcopunk, direcionamo-nos para um dos índios que haviam me
recebido cerca de três horas antes. Um rapaz relativamente novo e com sobrepeso.
Paulo, que é bacharel em direito, permitiu que o gravássemos tanto em imagem
quanto e áudio. Aprendemos a lição!
Em
meio à entrevista, três pessoas se juntaram a nós: um senhor de baixa estatura
e feições indígenas bem típicas acompanhado por uma mulher, também na faixa
etária dos 35 anos, além de um homem, apontado como um dos advogados da aldeia.
A princípio todos ficaram parados a ouvir o primeiro falando até que num dado
momento lhes foi oferecida a palavra, das quais fizeram uso por um bom tempo. A
mulher foi quem nos ofereceu o contato de um número considerável de pessoas
ligadas ao movimento e mostrou-se bastante entusiasmada com a nossa presença.
O
sr. ressaltou que a imprensa já esteve algumas vezes no local mas que, apesar
de tê-los deixado falar abertamente, nunca publicou o que eles diziam ou pleiteavam
“- Eles sempre engavetam tudo que dizemos de importante para nossa luta.”,
reclamou. Pediu que nos esforçássemos para que o que ele havia dito alcançasse
ao maior número possível de pessoas. A mulher, que se disse frequentadora do
local, afirmando morar numa comunidade de pescadores, pediu que mantivéssemos
contato através das redes sociais. Foi bastante solícita ao nos fornecer os
contatos de líderes e participantes do movimento de forma que puséssemos
ampliar e enriquecer o trabalho.
Ao
final nos foi oferecida pelo cacique, uma foto junto à fogueira que se encontra
no meio do hall. O sr, que abandonara sua aldeia no Acre em prol da luta, ornamentou-se
com cocar de penas de arara e outros adereços e pediu que posássemos junto a
ele. “ – É uma tradição e lhes trará sorte.”
Rio de Janeiro, 20 de Novembro de 2013
Minha
segunda visita a aldeia Maracanã ocorreu numa quarta-feira, feriado regional
pela consciência negra. Num dia de clima absurdamente quente, todas as minhas
expectativas acerca de possíveis atividades extras na aldeia foram frustradas.
Cheguei lá por volta de 12:30h. Tinha acabado de almoçar uma salada leve, mas o
mormaço em nada favorecia a disposição e o bom humor. Os integrantes do grupo
já estavam presentes e entrevistavam Paulo Apurinã.
Eu
já havia conhecido Paulo naquela primeira visita 13 dias atrás. Paulo é um dos
índios “importantes” da aldeia. Filiado ao PSol, tem planos não muito distantes
de se eleger senador pelo estado do Amazonas. Falou para nossa Nikon
semi-profissional por mais de 60 minutos, praticamente sem interrupções. Entre
realidade e utopia, figuraram em sua fala assuntos como construção de hidreléticas,
demarcação de terras indígenas, má distribuição de renda no Brasil, corrupção,
pobreza, ganância, dia-a-dia na aldeia, relação dos índios com o avanço
tecnológico, constituição federal e o não cumprimento do item – “direitos
iguais para todos”, projeto de tentar alavancar uma bancada considerável com
representantes indígenas no congresso, etc.
Paulo
Apurinã, pode-se dizer, é um camarada simpático e acessível. Bacharel em
direito, mostra-se muito bem articulado. Argumentou que Belo Monte é um desperdício
de dinheiro público, já que o rio Xingu não é perene, ou seja, as cheias são
intercaladas por longos períodos de seca o que, segundo ele, praticamente inviabiliza
o projeto. Este seria na realidade uma forma de entubar capital na mão de
alguns cartas marcadas “- A conta de Belo Monte, ficará para os netos de
vocês”, disse. Apesar de não ter revelado sua idade, tive a impressão que ele
tem cerca de 35 anos.
Após
Apurinã despedir-se para cumprir seu compromisso de ir à praia, ficamos por um
tempo a discutir aspectos relacionados com os trabalhos da Escola de
Comunicação. Encontrávamo-nos numa das únicas ocas que foram reerguidas após a
passagem devastadora do Batalhão de Choque em março deste ano. Aproveitamos
para documentar nossa conversa.
Estávamos
distraídos quando surgiu, próximo a onde estávamos, uma mulher com cerca de 25
anos. Encaminhando-se para uma pia lotada de louça suja (leia-se imunda),
situada na parte externa da aldeia, ao lado dos banheiros improvisados, a moça
teve todos os seus movimentos observados por nós. Não hesitamos em fazer uma abordagem
sutil e, simulando um papo casual, descobrimos que ela é residente de um abrigo
situado na Cinelândia, mas também se intitula como frequentadora assídua da
Aldeia. “- Gosto de vir aqui para ajudar”, declarou. Aberta à conversa nos
permitiu realizar uma série de perguntas, as quais foram prontamente
respondidas. Segundo Rosângela, que não fez objeção quanto a ser filmada, a Aldeia
não tem líderes. Tudo é coletivo. Comem da mesma comida, sem nenhum tipo de
diferenciação.
Adentramos
a Aldeia e nos deparamos com Francislei, um mineiro de Teófilo Otoni, que
Gabriel já tinha conhecido numa outra visita na qual não estive presente.
Francislei foi de grande valia para o trabalho. Além ter esclarecido diversas
dúvidas que levantamos, nos apresentou o local e todos os cômodos, incluindo a
parte superior, a qual alcançamos após uma grande dose de coragem para subir
através de uma escada sem degraus e com a estrutura decadente de ferro corroído.
Admito que apesar de arriscada, penso que a
aventura indiscutivelmente valeu a pena. Talvez essa tenha sido uma
oportunidade única de descortinar aquele ambiente tão misterioso/sombrio que,
talvez em poucos meses, não passe de escombros no chão. A percepção que tivemos
é a de que a estrutura está totalmente comprometida, talvez sem chances de
recuperação.
Após
sair da Aldeia notei balaústres que indicavam um terraço, ao qual infelizmente
não chegamos. Uma pena. Soubesse antes certamente teria tentado alcançá-lo.
Ao
final do dia estávamos exaustos, não pelo tempo que ali passamos – mas vencidos
pelo calor insuportável. Cheguei em casa passando mal e com sinais insolação,
mas com 250 fotos impagáveis em minha Nikon.